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Digressões sobre planejamento urbano, habitação e movimentos migratórios

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Estávamos falando de como a dispersão da favela pelo território carioca se tornou um fenômeno incontrolável. Aí lembrei que sempre tem gente disposto a dizer que “a culpa das mazelas das grandes cidades é esse bando de migrantes pobres que vem entupir as favelas e que se os governos mandassem todo mundo de volta o problema acabava”.

Meu argumento sobre o assunto começa considerando a falta que faz um planejamento urbano e econômico articulado, em nível nacional. O problema da migração maciça de trabalhadores, que nesse momento faziam majoritariamente o percurso norte/nordeste – centro/sul é fruto de uma política desequilibrada, que investe quase exclusivamente nos estados mais ricos (São Paulo e Rio de Janeiro, nesse momento), dotando-os de infraestrutura e promovendo sua rápida urbanização, enquanto deixa à míngua outros estados.

Vejamos: uma cidade como o Rio tem, naquele momento, uma rede de transporte mais ou menos desenvolvida, e um porto, essencial para fazer chegar a matéria-prima e escoar os produtos; está próxima das instituições políticas e bancos (o que agiliza a parte burocrática e o financiamento), tem oferta abundante de mão de obra. Isso possibilita, para o governo, instalar empreendimentos de grande porte ou facilitar (através de crédito e políticas tarifárias, por exemplo)  sua instalação por parte da iniciativa privada. Essas indústrias e negócios de todo tipo atraem mais gente, num ciclo contínuo. Onde tem gente, cresce a demanda por produtos e serviços, estimulando o desenvolvimento do comércio, aumentando a demanda por equipamentos públicos como escolas e hospitais, calçamento de ruas, instalação de redes de água, esgoto e luz. A cidade fica mais urbanizada, mais infraestruturada, a oferta de mão de obra cresce, e isso atrai mais gente (não só atrás de emprego, mas de melhores condições de vida, acesso a educação, saúde, bens de consumo) mais indústrias, e assim por diante.

Superfácil de entender e atire a primeiro pedra quem nunca imaginou mudar de cidade ou mesmo de país atrás de condições melhores, seja porque vai atrás de um curso bacana, seja porque a empresa em que você trabalha vai abrir uma filial nova em outro lugar, e isso abre a chance de uma promoção, seja porque no seu campo de trabalho as melhores ofertas estão em outro lugar e não onde você mora, seja porque sua área está num momento de estagnação e você cogita mudar de ramo. Quem nunca? Então não ache ruim com o agricultor que resolve tentar a vida como peão de obra, que vê seus filhos morrerem de fome no campo, sem comida, sem estudo, e sonha em poder botar os meninos na escola pra terem um futuro melhor. É tudo filho de deus, querendo o mesmo que você.

A grande questão é que cabe ao governo distribuir de maneira mais igualitária as benesses públicas, de forma a atrair investimentos de forma mais bem distribuída pelo território nacional. É o governo quem determina as prioridades em termos de obras de infraestrutura, por exemplo, que são fundamentais para todo o resto, e ajudariam (entre outras medidas, não é só isso) a fixar as pessoas na terra, a dar condições de prosperidade e desenvolvimento a todos.

Outro aspecto do mesmo problema, e que é o foco deste texto aqui, é a questão da habitação. Sem uma política habitacional decente, robusta, o que vai se ver sempre é exatamente isso que está descrito no texto e flagrante em todas as nossas grandes cidades. Porque, caso você ainda não tenha pensado nisso, TODO MUNDO MORA EM ALGUM LUGAR. Se você vive, você mora. Ninguém passa o dia andando e de noite é dobrado e guardado na gaveta. Se a pessoa não tem casa, ela se vira. Se tem condições, compra uma casa, aluga, constrói. Se não tem outra opção, mora na casa de parente, constrói barraco em morro, em beira de rio, em qualquer lugar onde haja terra disponível (desocupada) e ninguém impeça. Se tiver menos ainda ou for expulso de onde estava, vai procurar abrigo debaixo de uma marquise, num banco de praça, vai juntar folhas de papelão, de lata, de madeira, vai fazer uma fogueirinha pra se aquecer. A gente faz isso desde o tempo das cavernas. Procurar abrigo é natural. O que não é natural é que hoje, milhares de anos depois da primeira casinha ter sido construída por alguém com barro e folhas, com todos os recursos que nós geramos, toda a tecnologia que desenvolvemos, toda a riqueza que produzimos coletivamente, tanta gente ainda não tenha onde viver. Isso sim, não é natural – no sentido de que isso é produzido, é fruto de decisões, escolhas coletivas, sistemas culturais, econômicos, políticos, que fazem a gente naturalizar o fato de que poucos tenham muito e tantos não tenham quase nada, sem a gente se questionar por quê.

Escolher onde morar depende de uma série de fatores, e dinheiro é apenas um deles. A gente vê os mais pobres em áreas de risco e tende a achar fácil colocar a culpa neles: “eles sabem que aquilo vai cair na primeiro chuva, por que não se mudam?”. Mudam pra onde, meu amigo? Vão morar na sua casa? Não, nem na minha. Vão construir nos fundos daquele terreno que o seu avô tem não-sei-onde? Também não. Se eles construírem em qualquer terreno que tenha dono conhecido, o dono vai lá e tira, está no direito dele. Quais são os pedaços de terra que sobram, que ninguém reclama, ou reclama no vazio, vê e não faz nada? As terras que não têm valor para o mercado imobiliário, porque justamente estão em áreas onde não é possível ou adequado construir.

E não basta morar, você sabe. É preciso trabalhar, comer, se vestir, se deslocar. Moradia é algo que vai MUITO além da casa onde se vive, simplesmente. O valor da moradia tem a ver, sobretudo, com a localização da terra e a existência de serviços próximos, desde o mínimo de infraestrutura urbana (abastecimento de água e luz, coleta de esgoto, recolhimento de lixo, rede de telefonia, pavimentação) até facilidades de transporte, acesso fácil a hospitais, escolas, comércio, lazer; passando por aspectos como:

- vizinhança – ter vista pro mar / pra uma área arborizada ou vista para a favela / chaminé de fábrica, por exemplo, fazem diferença; ter como vizinho um estádio de futebol, um baile funk, uma boca de fumo ou uma igreja qualquer que faça barulho domingo 6 hs da manhã, tudo isso influi no valor da moradia;

- estar perto da família pode ser fundamental pra quem tem filho pequeno e trabalha;

- segurança;

- beleza – quem não gostaria de morar num lugar bonito, com praças arborizadas, mobiliário urbano bem cuidado (bancos, luminárias, sinalização, lixeiras, quiosques), calçada sem buraco?

Cada um sabe o que prefere, e tem todo o direito de fazer suas escolhas, conforme suas preferências, necessidades, condições. Mesmo que a gente considere a situação hipotética de famílias com a mesma condição financeira e, portanto, mesma possibilidade material de escolha, vai haver quem prefira morar numa casa maior, com quintal, mesmo que seja longe das áreas mais centrais, e que não tenha cinema nem teatro perto. Vai haver quem faça questão de estar perto do trabalho e do agito, mesmo que pra isso tenha que morar num apartamento pequeno. E assim por diante.

O que não pode é ter gente, morando na cidade, em condições de completa indignidade. Se o cara vai ter tv a cabo com 258 canais, ar condicionado em todos os quartos, 2 vagas na garagem, ou vai pagar aluguel num quitinete, ou num quartinho numa casa de vila, isso não é problema, não tem que morar todo mundo igual. Mas todo mundo deveria ter água tratada, luz, coleta e tratamento de esgoto e recolhimento de lixo, pra começar. É o mínimo do mínimo. E eu estou sendo conservadora aqui. Confesso que o meu mínimo inclui mais que isso.

Voltemos ao texto do Maurício de Abreu, onde é que a gente estava? Olha a perfeição de análise deste parágrafo, extraído da Revista da Semana de 15/08/1936, página 36:

O tempo e o intenso desenvolvimento da cidade demonstraram que mesmo os morros, depois de beneficiados, eram um excelente negócio para a venda de terrenos em lotes. E, tangidas pela intimação de mudança, centenas e centenas de criaturas, cujo único mal é serem pobres na cidade mais linda do mundo, vão sendo periodicamente privadas do teto misérrimo que a força do hábito já as levara a considerar como seu… Uns se dispersam; outros vão formar novos núcleos em terras de outros donos – casos futuros de ruído e de escândalo.

O autor lembra, portanto, que a permanência e disseminação da favela no Rio de Janeiro não atende apenas a interesses do Estado ou do capital, mas revela a luta – existente até hoje – dos mais pobres por moradia e pelo direito à cidade.

Com mais dois posts a gente encerra essa série sobre a origem das favelas e começa outras. No próximo, vamos olhar juntos a mudança que se opera na visão que a cidade contrói sobre a favela, e que fica patente nas letras de música e na literatura. Vai lembrando das que você conhece aí. E não esqueça, estamos fazendo uma leitura comentada do texto:

ABREU, Maurício. Reconstruindo uma história esquecida: origem e expansão inicial das favelas no Rio de Janeiro. In: Espaço & Debates. São Paulo: Núcleo de Estudos Regionais e Urbanos, ano XIV, 1994, no. 37. pp 34-46



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